“Um bar na praia com falso Mondrian”, acrílico sobre tela por Nina Govedarica. Exposição “Pombos e gaivotas em férias” na El PepGallery, de 30 de Abril (às 18h00) a 9 de Maio, centro comercial Imaviz, Av. Fontes Pereira de Melo 35, Lisboa.
Faux Mondrian
No colégio era conhecido como Clemente e os próprios pais lhe haviam mudado o nome para Vassálio, porque o original soava demasiado a russo, aos ouvidos portugueses daquela época. Mas era sobretudo conhecido como o 115, número que teria que calhar a alguém, a menos que o banissem, como o 13 dos hotéis, e que lhe valeu não poucos infernos à voz de ti-nó-nim.
Seria normal que ele me odiasse para toda a vida pois, em cima de tudo isto, eu trocava-lhe frequentemente o nome para Vitalino ou para Valério e, na dúvida, chamava-o por 155. Não faço já ideia por quê, talvez para formar equipas para um jogo, chamei-o um dia pelo nome original, Vassiliy Kleemt, isto sem esboço de troça, o que pelos vistos me redimiu de múltiplos 155, alguns Valérios e vários Vitalinos.
Kleemt tem, contudo, uma outra característica ainda mais curiosa do que o seu destino canhestro para os nomes, tem uma cabeça de Mondrian. Não que seja parecido com qualquer retrato conhecido de Mondrian, mas porque a sua própria cabeça é uma versão 3D de um quadro de Mondrian, um falso Mondrian, como ele diz, mas mesmo assim uma engenhosa recriação que se altera como é normal alterarem-se as expressões do rosto e que tem cheiro, sua, assopra e faz comichão e barulhos, como as outras cabeças que estamos habituados a usar.
Para além disso, pouco há a acrescentar, Kleemt é um tipo fisicamente discreto e até um pouco apagado, o que faz um estranho efeito, sobretudo em locais públicos, e pode dar origem a curiosos diálogos de café, como por exemplo, “Não sabia que tinham aqui um Mondrian, mas olha, está em equilíbrio instável, ainda cai para cima da mesa”, “Qual Mondrian? Aquilo é o Kleemt”, “Estás a tomar-me por um ignorante? Aquilo, um Kleemt? Então, eu não sei o que é um Mondrian?”
Fiquei um pouco surpreendido, quando ele me apareceu um dia, vestindo um fato cinzento de brilho azul, como se a cabeça se movimentasse projetando uma longa sombra para baixo, e me estendeu um cartão de visita, à maneira oriental, com acompanhamento de música e tudo, o que amenizou um pouco a gravidade da sua presença. Dizia assim, o cartão, “Vassiliy Kleemt y Faux Mondrian” e, por baixo, “Synesthete.”
Fazendo jus ao meu desastrado sentido de humor, perguntei-lhe se tinha casado com uma falsa Mondrian e que raio era um sinesteta, coisa que os dicionários de português ignoram e se isso teria a ver com sinestesia ou com sinestética. Ele respondeu-me que fizera vários cartões diferentes, um com Vassálio, outro até com Clemente, que se lembrara mesmo de Valério e de Vitalino, que era uma vantagem criativa poder jogar com diversas identidades, mas que arrumara de vez o assunto que o atormentara toda a vida juntando-lhe o Faux Mondrian, que este fizera grande sucesso na China e no Japão e que em grande parte lhe devia o facto de se ter tornado num confortavelmente respeitado “synesthete”, coisa que me pareceu ser, às primeiras explicações, assim como uma espécie de mestre em feng-chui globalizante.
Fiquei informado que a atividade escolhida por Kleemt para usar no cartão de visita, tem a ver com sinestesia, condição que foi originalmente considerada uma aberração e que ajudaria a explicar à gente séria a existência de uma outra aberração, o artista. Mas desde aí muita coisa mudou, “Sem sinestesia”, afirma Kleemt, “não haveria leitores de banda desenhada, ou por outro lado, só haveria leitores de banda desenhada do mais básico mainstream, apesar do princípio ser o mesmo, potenciar a capacidade que temos de complementar sensações. Quanto maior capacidade de o fazer por si próprio, mais rica a experiência. Quanto menor capacidade, maior dependência de uma linguagem simples e forte para conseguir uma experiência semelhante.”