Monday, April 27, 2015

ÓBVIO


A escolha de cores das letras acima é óbvia. Foi feita com recurso a uma paleta com cores complementares, ferramenta tornada popular pelos programas gráficos. Deu-me jeito para fazer um título óbvio, mas não estou a recomendar o seu uso sistemático a ninguém. Acontece que o título não é assim tão óbvio... ou será óbviio? Ou óbivio? Há aqui um choque de óbvios, em que um, pelo facto de deitarmos sobre ele os nossos olhos curiosos, parece afastar-se para tão longe que se torna difícil discerni-lo. Nesse ponto é frequente o cidadão comum dá-lo como uma bizarria ou mesmo uma maldade, uma anomalia sujeita a transmitir contagiantes preversidades. Soube-se hoje que algumas canetas laureadas da literatura mundial decidiram boicotar a homenagem prevista pelo Pen Club ao Charlie Hebdo. Também aqui há um conflito de óbvios. O óbvio mais basicamente óbvio, aquele que vai ao encontro das ideias feitas do cliente deste início de século, apresenta-nos o Charlie como um jornal racista, xenófobo, com um humor brutal, insultuoso e de péssimo gosto, que ataca abaixo da cintura. Também é óbvio que deixar passar a chacina vingativa de metade da redação dum jornal, com base em considerações de gosto, sem uma resposta firme de quem se preza defensor da liberdade de expressão, é algo que nem tem nome (Salman Rushdie já lhes chamou, no Twitter, os Six Authors in Search of a bit of Character). Terceiro óbvio, aquele que se afasta a olhos vistos à medida que o século avança, é que o humor brutal (e, quanto a mim, de péssimo gosto) do Charlie não é racista nem xenófobo, se bem que as linhas finas com que se cose possam dar-lhe esse aspeto. Estas linhas finas, fáceis de pisar, não são óbvias, custam a encontrar e mesmo depois de encontradas há que as manter seguras. Pode mesmo perguntar-se se terão alguma utilidade para além do exercício intelectual que proporcionam, visto que o mundo se agarra cada vez mais ao óbvio mais basicamente óbvio, aquele que vai ao encontro das certezas, aquele que não está plantado no meio do caminho, mas sim colado à testa do caminhante.

Sunday, April 19, 2015

NO PRATO

Um funcionário de topo do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, disse ao The Observer que a situação dramática das vagas de migrantes que tentam atingir a Europa através do Mediterrâneo só não é atenuada (pela presença de mais meios de busca e salvamento) por falta de vontade política dos governos europeus, reféns do eleitorado, cada vez mais xenófobo e alarmado com a crise. E diz ainda: “O nível de diálogo, comparado com o de há 20 anos, é surpreendente. Não teria sido possível, no passado, a retórica racista, a retórica da intolerância. Nos anos 60, 70 e 80 isto nunca seria aceite.” Vejamos, então, é a democracia que está mais direta? São os governos que baixaram de nível? Terão os povos subido de escalão? E, se assim é, terão ainda os povos legitimidade para usarem os governos como bode expiatório de todos os seus falhanços, a começar pelos governos que eles próprios elegeram? Ou povos e seus governos terão embrutecido a olhos vistos, nas últimas décadas? Seria mau verniz? Seria falso diploma? Falsa tolerância? Excesso de livros grandes com letras gordas? Excesso de redes sociais? Excesso de noticiários nacionais? Hipocrisia? Os povos querem lá saber! Desde que seja no prato...

Thursday, April 16, 2015

TROLLITEIRO

Um caceteiro com conta no facebook, mais recentemente também no twitter. Um trauliteiro, em suma.

Saturday, April 11, 2015

CONSUMIMÉTICO

Do ponto de vista da minha adolescência, os editores, em Portugal e em ditadura, resumiam-se a duas categorias, os corajosos e os outros. Isto quando Portugal era um país em grande parte analfabeto, com pouco interesse por coisas culturais e que dizia tudo em inho. Acabou-se-me a adolescência e também se acabou a ditadura, a nossa grande desculpa para sermos corajosos. Seguem-se duas décadas de marés, cada vez mais semelhantes mas ainda sob algum efeito da mudança de regime, a Europa, a internet, o novo século, o 9/11, o euro, os abalos financeiros, os senhores da guerra, as epidemias e... em Portugal sobrevive o efetivo analfabetismo e a fraca curiosidade intelectual, cuja se limita a testar as novidades nascidas fora, e uma tépida diversidade cultural, também inserida por imitação, que se quer já adaptada à ânsia de tudo mercar o mais depressa possível. A sociedade portuguesa é, então, aquilo a que chamo uma sociedade consumimética, virada para uma simplória e fácil orientação dos gostos. Divergências, ideias originais ou polémicas nascidas no seu interior esbarram contra ela, tal como se esbarra contra uma fila compacta de clientes de supermercado com o nariz enfiado no folheto das promoções. Uma coisa é vender livros num supermercado, outra, mais perigosa, é submeter a edição às suas regras. Se editores e programas de governo para promover as letras e as artes se submetem às regras de supermercado, na mira de sucesso e de lucro rápidos, não obterão mais que magros lucros quando comparados com o custo das fragilidades culturais e da dependência, que se seguirá, com o tempo. É um preço muito pesado para apenas ver uns dinheiros a circular de uns bolsos para outros. Ainda acabam, acossados pelo fantasma que ajudaram a criar, a esconder-se da própria sombra.

Sunday, April 5, 2015

BROQUEIO

Zenzibre. Conesse zenzibre? Muito bom.” O nepalês esforça-se para vender tudo o que tem à vista, fazendo o papel de divulgador de produtos exóticos. Contudo, gengibre há muito que não faz parte desse grupo. Os verdadeiros produtos exóticos estão a perder a batalha e a desaparecer das prateleiras, porque não têm saída. O que o povo quer é sopinha, os nepaleses nunca viram povo que gostasse tanto da dita sopinha e vão-se habituando à ideia que tudo o que não se pode transformar em sopinha, vende-se muito pouco. “Zenzibre” e aponta com o queixo “Ali.” A senhora atrapalha-se com os sacos e confessa que não conhece, mesmo quando o nepalês agarra num pedaço de gengibre dizendo “Esto, zenzibre.” Fechada a porta que dá para o estrangeiro, apesar da pronúncia ser quase igual, a senhora sorri. Por fim, parece acordar e exclama “Gengibre! Claro que conheço!” “Esto, zenzibre!” “Gengibre, pois claro.” “Muito bom, zenzibre.” “É gengibre, pois é.” “Quer zenzibre? Muito bom.” “Não quero gengibre. Não quero.”

Saturday, April 4, 2015

F1%s0F14

A ideia de criar palranoas nasceu da imaginação saturada de inventar códigos de segurança com 70li$$Es com mais de oito letras, entre maiúsculas e minúsculas, e símbolos vários, exceptuando uns quantos. Como também não me contento em apelidar as pastas que se vão acumulando no computador do género “Projeto Nau Negra versão 23 low res preto e branco com teste de texto sem balões”, ou mesmo “PNNv23lrpbttsb”, dizia eu, tive que imaginar códigos curtos mas suficientemente individualizados como, por exemplo “Paus Noas Noas & TT”, cujo resultado nem sempre é eficaz. Junte-se a esta prática a imperativa observação do universo que nos rodeia e temos as palranoas, que continuarei a divulgar aqui, à medida que forem surgindo. Eis mais um indício de como a revolução digital continua a influenciar a filosofia. Chamam-lhe agora F1%s0F14.

Thursday, April 2, 2015

Palranoas: ORGALHO.

É sabido, há quem tenha um orgulho de grandes dimensões e outros há que os têm pequenos. Já não é tão evidente haver quem tenha orgulho em coisas indignas e que o seu número seja tal que se possam agrupar populações inteiras pelos tipos de indignidades praticadas. Digo que aparenta porque me parece pouco provável que se tenha genuíno orgulho nelas. Será mais uma espécie de orgalho e é, frequentemente, trauliteiro. Assim, quando fôr alvo de manhoso ataque de inveja ou abuso de confiança, quando lhe mentirem e enganarem descaradamente ou adiarem promessas que nunca tencionaram cumprir e, ainda por cima, se gabarem de ser assim mesmo que as coisas são e que você é que está errado, poderá sempre dizer “enfim, eles lá têm o seu orgalho!”

Wednesday, April 1, 2015

Palranoas: GUGLER.

Há que acrescentar avisos, quanto mais não seja na contracapa, dos livros traduzidos para português, indicando o grau de amor à arte com que o texto foi traduzido, ou se foi apenas guglido. Nalguns casos podemos desconfiar que o livro foi originalmente escrito sem dor ou prazer mas, em geral, a afonia do texto denuncia a prática do gugler pelo tradutor. Pode ir ao extremo de vestir em português palavras estrangeiras. Lembro-me de um caso em que, de tão literal, a tradução sugeria, a certo ponto, o contrário do texto original. Gugler tornou-se tão comum, que não poupa traduções de escritores premiados por intelectuais encartados, sendo que aqui o texto se pode limitar a um arrastar de preguiças a que foi extraída a vontade de viver, sem dar muito nas vistas, por esses baixos amarinhais fora.